Trabalho de pastor sobrevive quase sem mudar há dez mil anos

Nas andanças pelo Brasil e pelo mundo, é comum o Globo Rural encontrar gente do campo trabalhando em atividades com origem num passado muito remoto. Esse é o caso do Nélson Araújo, que acompanhou a rotina de um pastor na caatinga nordestina e de uma pastora na Cordilheira dos Andes, no Peru. Apesar dos milhares de quilômetros que separam um do outro, o cotidiano dos dois é muito parecido e pouco mudou desde a época em que o ser humano começou a pastorear animais, há dez mil anos.

Nos Andes, o lago de Titicaca é um céu entre as montanhas. No Seridó, o céu é que despeja o azul cristalino na caatinga. O chão áspero, carrasquento do sertão, tem seu semelhante nas encostas secas da cordilheira. Na mata espinhosa brasileira, a palma é lembrança perene do verde. No altiplano peruano, a aguinha que escoa dos picos nevados mantém o vivo do capim.

A dona Anselma Mamoni e seu Maurício Santos têm semblantes iguais. Eles observam, procuram, esperam.

Na Cordilheira dos Andes o homem colocou o pastoreio nas alturas, sem querer fazer trocadilho. Nas montanhas mais elevadas do entorno do lago de Titicaca, divisa do Peru com a Bolívia, os animais são criados até cinco mil metros acima do nível do mar. É uma região seca, recortada por vales verdes, os chamados bofedales, os pantanais de altitude.

O bofetal é uma fita de capins e ervas rasteiras serpenteando entre as montanhas. É o que animais capazes de sobreviver no altiplano têm para comer, especialmente as espécies de camelo que se adaptaram aos andes. São quatro espécies: vicunha, guanaco, alpaca e lhama.

A dona Anselma tem um rebanho variado de 80 cabeças. Mas a maioria são alpacas. Quem não conhece, confunde a alpaca com a lhama. A alpaca pesa no máximo 90 quilos. Já a lhama chega aos 150 quilos. A alpaca é mais delicada, mais dócil e tem a carne mais palatável e pelagem de fibra mais fina.

A dona Anselma fica sentada debaixo do chapelito de aba curta tricotando lã em um ponto do vale que tem o lago e as montanhas ao fundo. No marasmo da tarde, sem nenhum sopro de vento, capim parado, só as mãos dela pareciam ter pressa.

A dona Anselma é uma nativa que não fala espanhol. Nesta região dos Andes, ainda estão ativas duas línguas das civilizações pré-incas: o quíchua e o aimara. Ela é da cultura aimara.

O tradutor é Pedro Juan Fuentes, da Aders-Peru, uma ONG que apoia famílias isoladas na Cordilheira. Talvez por estar incomodada com a abrupta chegada do grupo, talvez por nunca ter visto uma equipe de televisão, talvez por ser mesmo de natureza mais contida, dona Anselma, de pronto, não solta a prosa. Ela fica embaraçada nas frases.

Mas, vencido o receio, a dona Anselma abre uma conversa a conta-gotas. A pastora é casada e tem 40 anos. O marido, que é auxiliar de pedreiro, e o casal de filhos, que estudam e trabalham, moram em uma cidade que fica a três horas de viagem de onde pastoreia os animais. A cada mês, ou ela vai ou o marido vem.

O trabalho de dona Anselma é vigiar e tomar conta tanto do bem-estar como da segurança dos animais. Para defender o rebanho dos predadores naturais, como o zorro, que também vivem na Cordilheira dos Andeis, a dona Anselma usa uma corda trançada com lã de alpaca. No meio tem uma cinta dupla para acomodar uma pedra. O nome da arma é guaraca.

É uma arma semelhante ao que chamamos de funda, bodoque, atiradeira.
É de seis mil quilômetros a distante entre o entorno do Titicaca e a caatinga do Seridó. Apesar das diferenças de paisagem de altitude, por exemplo, algo em comum une a caatinga nordestina com os bofedales peruanos. É a solidão no hostil ambiente de pastoreio.

Tal como dona Anselma, o seu Maurício Santos caminha só todas as manhãs liderando o rebanho de ovelhas. A propriedade de 24 hectares fica em um pé de serra no sertão do Seridó do Rio Grande do Norte.

O seu Maurício igualmente se resguarda com uma pequena defesa. Nesta parte do sertão, não há predadores naturais como nos Andes. Ele não tem cachorros. Mas, leva o estilingue no bolso para proteger o rebanho dos cachorros.

O posto de sentinela lhe cobra esforço redobrado. Por um problema que não pode esclarecer nem resolver, ele praticamente não enxerga do olho esquerdo e é obrigado a usar óculos escuros o tempo todo.

O rebanho é recente. Uma mudança de vida, que não vem ao caso, obrigou o seu Maurício a começar do zero outra vez. Com orientação da Emater, ele fez um Pronaf e comprou 12 cabeças. Com a parição muito boa da raça, ele já conta com mais de 60 animais.

A dona Anselma também vem de uma fase de aprimoramento do rebanho. A alpacada mais nova já apresenta um perfil genético bem melhor em relação ao que tinha há cinco anos. Da monta natural passou à inseminação, com material cedido pelo Instituto Nacional de Inovação
Agrícola – INIA, uma espécie de Embrapa do Peru.

Nas vastas solidões da catinga nordestina o cuidado com as criações segue idêntica cartilha do que se vê em zona andina. O pastoreio nos sertões se dá longe da família em longas horas de vigília.

Pastoreio é um encargo manso. Porém, o ofício de caçar artérias, buscar forragem, sejam rasteiras ou aéreas, não concede descanso. Criação não tira férias. A pessoa dá a cara ao sol, ao vento, ao frio.  Se agarra no alento. Enfrenta o fastio. Vive no enquanto: enquanto o pisoteio do tempo vinca o vazio.

O calor inclemente do sertão obriga o pastor Maurício a lançar mão de um artifício para evitar insolação dele e da criação. Nem bem termina a manhã, traz de volta os castrados, o grupo das marrãs, as paridas com cria. É um modo de proteger a criação das horas mortas do dia.

Quem tem fartura de água não faz ideia de como é viver com o líquido contado. O seu Maurício coleta a água da chuva. E a cada 42 horas se serve da torneira que a Prefeitura lhe pôs no quintal.

A relíquia é guardada em recipientes de plástico. Para a família são destinados 300 litros por dia.

Com a fartura do degelo, água não falta para a dona Anselma. Ela precisa de pouco precisa para manter a casinha. Para os animais, tem água de sobra. Mas, lhe falta horizonte.

“Eu, Anselma Mamani Pilco, recebi essas terras do meu pai. Não sei por quantas gerações a propriedade é da família. Meu marido, meus filhos, não veem futuro nenhum aqui. Consideram um trabalho penoso e que dá pouco dinheiro perto do que podem ganhar na cidade, embora não seja grande coisa. Não suportam o isolamento. Eu tenho pensado em deixar isso aqui de herança para uns primos, pra terra não sair da mão da família”, disse.

A família do seu Maurício já se encaminha para levar vida de cidade. Recentemente, depois de conseguir pagar o financiamento do Pronaf, o pastor recebeu do médico a informação de que pode perder a outra vista também.

Assim como dona Anselma, de quem a dureza da rotina não apagou o sorriso, o seu Maurício não se abala. “Não tenho reclamação de nada. Tudo que eu faço eu fico satisfeito. É minha vida que eu levo com o maior prazer. Para mim, tudo é bom demais”, concluiu.

Por Globo Rural

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